quinta-feira, 17 de setembro de 2009

cinema novo



O fulano de tal vai ao cinema, compra uma pipoca ou não, senta-se no melhor lugar que ele acha que existe para aproveitar o que está por vir na tela à sua frente, se acomoda, tenta ficar confortável e as luzes se apagam. Supostamente, ali termina o “mundo real” de antes e começa um trato com o cinema: eu esqueço tudo e entro aqui, você me diverte, me faz rir, me dá susto, me faz chorar, pensar ou o que tiver que fazer; eis o combinado desse lado. Do outro, alguém que um dia fez o filme decide o caminho que o fulano de tal deve seguir para sentir aquela obra projetada, seja qual for a escala de comprometimento. Existe o caminho. Aquele Querido Mês de Agosto tem um caminho, o de cada um ali sentado, que irá traçá-lo de modo único e intransponível. E é exatamente por isso que existe aqui um filme que não deve ser discutido, questionado, refletido ou subjugado. Existe uma visão e ali está o filme (e este texto não se prestará a esgotá-lo)

Miguel Gomes filmou nas entranhas de um local, no mais interior dos interiores de Portugal, e lá encontrou cada uma das pessoas que em algum momento da vida fazem um trato com o cinema. No lido com essas pessoas, esses tipos, esses personagens, o diretor e sua equipe encontram o olhar da outra parede da sala e jogam para eles a sensação de serem o filme e sentirem a proximidade com o retratado. É real porque aquilo existe, mas é ficcional, pois é um filme. Está sendo documentado, mas previamente foi roteirizado. O que existe então na tela, realidade ou ficção? Em que momento o interior dos interiores de Portugal vira o interior dos interiores de suas pessoas e serve de inspiração para se criar o interior dos interiores dos personagens? Sinceramente, não interessa.

Não interessa porque pode existir um plano que quer intencionar uma fusão entre as “partes” (“todas as aspas possíveis”, citando Ilana Feldman, num texto impressionantemente feliz no debate pós-filme), pode ser que o processo tenha encontrado um meio de construir uma ficção a partir do que foi capturado do real, que a ficção tenha sido forjada em real ou o real trabalhado para parecer ficção; nada disso importa porque na tela está o que realmente pode ser real numa experiência como essa, a compreensão extrema do público, o tato. Ainda que o fetiche do lado de cá seja ficar instigado em saber se um dos momentos finais do filme retrata atriz ou personagem, a resposta é inútil e desnecessária. Aí está a graça de se ver a obra de Miguel Gomes e sua equipe (parte imprescindível para que o tal caminho seja possível), a de enxergar o que se pode, mas impedir que isso seja descrito.

É como no momento em que o técnico de som afirma que existe sim a possibilidade de que um som que não esteja no ambiente seja ouvido, mas tecnicamente não. Eis o paradoxo de um filme que pode ser classificado inteiramente como novo (e novidade, no cinema, nem existe mais). Fazendo com que o fulano de tal ouça sons que não estão lá, Miguel Gomes é original, novo e pleno. E do seu modo, o cinema é (re)inventado.

Um comentário:

  1. Não vi. Eu gostaria de ter tido essa visão pessoal, esse contrato pessoal que é esse filme, por suas palavras.
    Portugal... cinema... documentar a ficção. alguma coisa do filme lembra o Pedro Costa?
    Beijo

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